O Carnaval Carioca (17/06/2025)
"Macumbembê, Samborembá: Sonhei que um Sambista Sonhou a África"
“(…) A Macumba é o ritual mais aproximado do Samba. Já está a Macumba aí.
Quanto ao Samba… a origem do Samba é a Macumba.”
Heitor dos Prazeres – depoimento ao Museu da Imagem e do Som, 1966“Na pintura eu sonho. Eu sonho música, eu sonho momentos amorosos, eu sonho alegria. Enfim… tudo eu sonho, tudo me dá riqueza. (…) Essas figuras que eu faço de coisas que eu já vi, que ainda existem, esses bailes, essas Macumbas, esses Sambas, essas coisas que existem, (…) eu tenho tudo aquilo do passado e de agora dentro da minha memória.”
Heitor dos Prazeres – documentário Heitor dos Prazeres, de Antonio Carlos da Fontoura, 1965“Eu cheguei, moçada…”
O som dos tambores ao fundo, misturado ao cantar sereno de pastoras e passarinhos. Minha gente vai descendo o Morro, de cetim se faz manto sagrado, o branco e o azul cintilantes, lampejos de franjas. O enredo que sonho e conto a vocês celebra as memórias e os percursos de “um homem do povo”, multiartista, sambista, inventor, sonhador de uma nova-velha África, uma África que se congraça no coração do Rio de Janeiro. A África que ele canta, desenha e reinventa é uma África imaginada, impressa em estamparias, pintada em poemas, telas e partituras. Um lugar de roupas vistosas e casas coloridas, onde as pessoas se reúnem para sambar, brincar, comer, fazer Macumba. Um lugar que não é necessariamente “pequeno”, mas do tamanho do mundo: uma “África em miniatura”, múltipla, muitas “Pequenas Áfricas”, unidas e conjuntas, conectando centros e periferias, morros e roças, jongos e cateretês. Retalhos de pilar café, cortar a cana, cantarolar com as lavadeiras, pisar chão batido e dançar, reconstruindo os afetos entre ruas e boulevares, veias que esboçam folias e redesenham a vida. Os fluxos da Bahia, nos estandartes que giram – e seguem oceano afora, nas nuvens dos devaneios, em direção ao Continente-Mãe (reflexo e pertencimento). Mas vamos sem pressa, Povo do Samba. Que o miudinho é o mais fino traço!
“Me deixem vadiar…”
Lino
A África de que falo é um quilombo em festa, cortejo real que me leva às raízes baianas deste “Pedaço” – cuja pedra angular é a Pedra do Sal e cuja capital é a Praça Onze. Com fé, mandinga e saudade, balangandãs brilhosos (as joias da nossa coroa), chego às lembranças queridas, famílias de sangue e de Santo. Quem diria, o espelhamento: Tio Hilário e Tia Hilária, “padrinho” e “madrinha” do memorando – menino arteiro que, apelidado de Lino, é o Príncipe Negro deste cortejo (os perfumes dos velhos Ranchos…). Foi por meio de Hilário Jovino, Lalau de Ouro, um Orfeu da Bahia retinta, o Tio, que a família daquele menino nascido das ruas do Rio conheceu um lugar lendário: o reino de Ciata, Hilária Batista de Almeida, a mais afamada das Tias em cujos quintais o Samba fervia. O etéreo! Naquela época, os “Ranchos baianos” se transformavam, rasgando os tons dos reisados, pastoris amenos, e adquirindo, aos pouquinhos, contornos feéricos – anjos com asas de prata, platinelas douradas. Sonhar é pra quem flutua… no eterno! Versado na capoeira, o menino viu isso tudo. No esquivo de cada invertida, as mãos do destino pavimentavam caminhos. Os olhos brilhavam no azul do encanto!
Ogã Alabê-Nilu
Era a casa de Tia Ciata o lugar da roda: se a Praça Onze era a capital da África de cá, repleta de sortilégios, a Macumba e os tambores educavam pelo toque. Matriarcais, insubmissos, rebeldes. Ecoavam vozes profundas, ávidas de escuta. É que muitas gentes chegavam, trazendo pedaços de crenças. A fé é uma velha moenda e ninguém certamente sabia aonde a “cidade” findava, dando lugar ao “campo”. “No tempo da aprendizagem”, como ele mesmo dizia, o terreiro era casa e travessa; a praça (pública), o ponto riscado – assentamento e congá. Quem rodopia em ciranda, criança, sabe do que estou falando… Eu me lembro daquela canção, na alvorada: “Baião, Baião, Baião… / filho do Maracatu / descendente do Lundu / Neto do Cateretê”. Tudo, enfim, estava ali, lá, jongado, naquela mistura de caboclos e pretos-velhos, nas fumaças dos cachimbos, nos pés descalços vibrando a gira. Roda-gira! Naquela casa de curimba, o jovem Lino foi Alabê-Nilu, comparsa de Pixinguinha, cantor-tocador de atabaques, Ogã de Xangô e d’Oxum, guardião de um peji matizado. A vida a brincar de batucar na esquina: “Xangô, olhai nossos filhos, meu pai! Xangô, de lá do teu reino, meu pai!”
Mano Heitor do Cavaco Guiado por Hilário e Hilária, o menino cresceu intrépido. Viu o Samba vestir sapatos, trocando o piano, a paixão solene da infância, pelo choro das cordas de aço. Encontrou no cavaquinho um fraterno confidente: aprendeu a tocar sozinho, sonhando acordado. O moço virou foi Mano – Mano Heitor do Cavaco, Mano do Estácio, Mano do Mangue, Mano da Festa da Penha, Mano das parcerias e das pernadas com outros Bambas, bambambãs, pulando de lá pra cá: “Macumbembê, Samborembá!” Ora: a Macumba gerou o Samba, como ele mesmo atestou. Ser sambista era a sua sina, não havia escapatória. Sempre muito alinhado, a gravata borboleta, o paletó bem cortado, os anéis reluzindo nos dedos – a nata da malandragem, a modernidade negra. Um dândi a flanar por aí, bares e gafieiras, costurando a cidade inteira feito a mãe costurava saias.
Viver é uma forma de arte e ele vivia a pintar o que via. E o que falar das orgias, dedilhadas pela Lapa?! Se Samba é que nem passarinho, como disse um certo Rei, gostava que se enroscava de voar nas madrugadas. Jogava. A Penha, lá de cima, dizia que sim!
Afro-Rei-Pierrô
Pois ele também virou Rei, nessa disputa caprichosa. O sucesso musical chegava. E quando vinha o Carnaval, a rinha se acentuava: tudo é competição, desde que o Samba é Samba. No concurso de Zé Espinguela, a flecha certeira de Oxóssi, ganhou o primeiro lugar! Escolas de Samba nasciam e o moço estava no meio, confirmando a ideia precisa de que ele e os irmãos mais chegados, os manos Paulo e Cartola, herdaram do bravo Zumbi o poder de sonhar quilombos. Deixa Falar, Portela, Mangueira, Tijuca, Vizinha Faladeira, De Mim Ninguém Se Lembra… em cada pavilhão um reinado, um símbolo, o bordar de uma nova estrela, na feitura das constelações. O Sol e a Lua, o emblema tão desejado! Na boca do povo, pelos becos em convulsão, sob a chuva de confetes, “um Pierrô Apaixonado que vivia só cantando…”. Brindou com Noel Rosa, o Poeta da Vila, enrolado em serpentinas, à glória de uma marchinha! Pegou o bonde da história, vestido de baiana, e saiu por aí, feliz, tropeçando nos calendários – pra tudo se acabar na quarta-feira, a inspiração de outrora, ou será que não é bem assim?
Pintou e bordou, este líder nato! Foi o mestre da própria oficina, matéria de carpintaria, passo e compasso do pai. Nas tramas da moda, nos palcos e nas coxias, nos letreiros dos cinemas, sob as luzes dos cassinos, no vuco-vuco das Bienais, viajando, viajando… Gravou a Macumba em disco, o Embaixador, para consagrar a fé e a farra como a nossa fusão maior. Viu a Praça virar Avenida e atiçou a nostalgia, chapéu de palhinha e palheta, via Rádio Nacional. Sonhava poetizando – inclusive ganhou poemas de amigos de tinta e de pena, o caso de Carlos Drummond, mesmo autor de “Sonho de um Sonho”, poema que eu já desfilei! O poeta de Itabira, ele também sabia que é dentro do peito que o pandeiro bate! Até as gentes de outras terras, Josephine Baker, Orson Welles, a princesa da Inglaterra, todos se deixaram guiar pela ginga do alfaiate-pintor.
Que vestiu xequerês e ganzás, violões, tamborins e agogôs; que por estes e tantos motivos, foi um dos artistas escolhidos para representar o Brasil no Primeiro Festival Mundial de Artes Negras, realizado em Dakar. Arrumou as malas e foi, diplomacia que samba, apresentando-se assim:
“Eu sou Heitor dos Prazeres. Heitor dos Prazeres é meu nome!”
Mas ele não foi sozinho, ao Senegal, ansioso por conhecer a África que ainda não fora pintada. No rol de notáveis (Clementina de Jesus, Haroldo Costa, Paulinho da Viola, Mestre Pastinha, Mãe Olga de Alaketu, Rubem Valentim, Camafeu de Oxóssi…), foi com ele quem escreve aqui, eu, a Unidos de Vila Isabel, o Mocambo dos Macacos, o Morro do Pau da Bandeira. O filme “Nossa Escola de Samba”, de Manuel Horácio Gimenez, retrata o dia a dia dos “anônimos artistas” liderados por Seu China, no chão da poesia cantado por Paulo Brazão. Comunidade que sonha e trabalha, enquanto prepara o desfile – o garbo e a garra, cerzindo quimeras. Sublime. Este tesouro-documentário foi exibido em Dakar juntamente com a película que mostrou ao mundo que é possível recriar este mesmo mundo no interior de um ateliê. Sonho Sonhado!
Eu fui contigo, meu Mano, kizombando e trançando o tempo. E vou novamente agora, rumo ao próximo cortejo, na Marquês de Sapucaí, artéria da Praça Onze! Também sou aquela gente que você viu dançar na rua, levantando a poeira doce, vestindo a pele das feras, chocalhos nas canelas, turbantes e panos da costa, fios de conta e patuás. Sou Angola, Congo, Nigéria, Moçambique, Etiópia, Costa do Marfim, Guiné, Benin, sou de todos os lugares, o cair do crepúsculo sobre os rios e os mares, sou a Vila, forte e unida, tremulando nas multidões. Sou a Vila, memória ancestral das tantas Áfricas que o Samba esculpe, arruaça que se lança neste sonho carnavalesco, desfiando a fantasia que você também usou.
Venham sonhar comigo, sambistas de todos os cantos! Venham sonhar conosco!
Brincar de catar estrelas, romper fronteiras, bagunçar o coreto e balançar a roseira, sorrir em azuis pinceis!
“Noites de festa no Rio,
Noite de danças e cores,
Em que teus pincéis e notas
Embalam os nossos amores”
Carlos Drummond de Andrade – O Adeus dos Poetas, 1966Enredo, pesquisa e texto: Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinícius Natal
Carnavalescos: Gabriel Haddad e Leonardo Bora
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